![]() “Observei que, em todas as discussões que precediam a escravização da medicina, tudo se discutia, menos os desejos dos médicos. As pessoas só se preocupavam com o ‘bem-estar’ dos pacientes, sem pensar naqueles que o proporcionavam. A ideia de que os médicos teriam direitos, desejos e opiniões em relação à questão era considerada egoísta e irrelevante. Não cabe a eles opinar, diziam, e sim apenas ‘servir’”. — Dr. Thomas Hendricks, personagem de Ayn Rand em “A Revolta de Atlas” O ensino médico brasileiro vem sendo lentamente reformado há cerca de 20 anos porque, segundo alguns integrantes do governo, acadêmicos, entre outros, a educação médica tradicional preparava uma mão de obra que não correspondia às demandas da realidade brasileira ou, mais especificamente, do Sistema Único de Saúde (SUS). Sob esse argumento, foi decidido que a formação profissional precisaria mudar, adequando os novos trabalhadores às finalidades políticas pretendidas, visto que a área da saúde é considerada prioritária para o sucesso do “progressismo”. A partir desse imperativo, logo o curso médico passou a ter o objetivo de gerar mão de obra para a área de maior necessidade do SUS: a “Atenção Básica em Saúde”(ABS). Este nível da assistência engloba, entre outras coisas, a medicina de família e os postos de saúde. Pretende-se que a ABS resolva os problemas mais simples, comuns e, quando necessário, coordene o fluxo de pacientes para os outros níveis da Atenção – hospitais e centros de diagnóstico ou tratamento especializado. O raciocínio é, portanto, de que o estudante de medicina deve ser moldado para atender aos interesses do Estado - de preferência, na ABS. Mas o que acontece se ele não tiver inclinação natural pela ABS ou for mais propenso a seguir áreas diferentes da medicina, tais como dermatologia, radiologia, oftalmologia? As discussões sobre o novo curso médico desconsideram a individualidade do aluno e estão decididas a moldar sua identidade. Menospreza-se a individualidade, a vontade e as características, inatas ou desenvolvidas durante a juventude - pontos fortes e fracos -, que tornam cada ser humano singular, único, diferente dos outros em motivos, projetos, ações e potencialidades. Na civilização ocidental livre, atribui-se à educação o papel de expandir os horizontes do aluno, desenvolver uma autonomia que lhe permita fazer escolhas para a própria vida. Sob esse paradigma, o bem da sociedade decorreria do bem de cada indivíduo, interagindo de maneira ética e livre com os demais. Entretanto, atualmente, a maior parte dos textos em educação médica manifesta o princípio oposto: a “sociedade” (na verdade, o governo) determina o papel do indivíduo perante a coletividade. É claro que essa intervenção no ensino não poderia ser feita de modo claro e franco, pois, como bem sabem os pensadores gramscianos, os indivíduos livres resistem às investidas dos que procuram controlá-los. Por isso, a reforma tem sido gradual e sustentada por estratagemas retóricos de um grupo ideologicamente alinhado, que valida as ideias uns dos outros e tende a doutrinar os estudantes, visando à expansão da base de apoio e a conquista de novos membros. Sendo assim, os jovens que desejam se realizar na medicina, mantendo a responsabilidade e liberdade do agir ético, devem estar prevenidos a respeito dos seguintes mecanismos, que tentarão invadir-lhes a esfera de soberania e alterar-lhes a percepção da realidade, durante o curso:
Além desses elementos, que por si só são deploráveis, a manipulação política do currículo médico traz outro efeito devastador para a qualidade da formação: a redução do tempo de ensino nos campos de estágio que desenvolvem saberes e habilidades mais complexos, o hospital-escola e as clínicas especializadas. No seu lugar, os alunos aprendem em locais de vivências mais corriqueiras, tais como postos de saúde e hospitais de assistência sem nível acadêmico, onde a rotina se sobrepõe à preocupação com o pleno desenvolvimento intelectual dos estudantes. Isso é ruim porque, do ponto de vista didático e epistemológico, considerando aspectos da ciência cognitiva para o aprendizado, o hospital-escola de alta complexidade favorece o estudo mais profundo de especialidades, o que ajuda na formação do conhecimento do corpo humano e suas doenças de um modo mais substancial. Sem informações oriundas das especialidades médicas, não há como construir bons conhecimentos médicos gerais – não há como conhecer o todo sem conhecer as partes. A formação profissional em um ambiente com menos vivências de casos de especialidades ou de alta complexidade pode fazer com que a visão do todo seja simplificada em demasia e até deformada. Desse modo, o direcionamento do currículo, segundo critérios políticos, ideológicos ou sociológicos, no lugar da organização segundo a estrutura do conhecimento científico, a ética personalista e o respeito à sequência do desenvolvimento cognitivo, pode criar “generalistas” sem preparo e, possivelmente, sem aptidão ou prazer pelo que fazem. O paciente pagará o preço, em recursos financeiros e sofrimento, disso que pode ser considerado um desperdício de capital humano, na formação médica. Investir em ambientes que permitam o desenvolvimento máximo das potencialidades individuais de cada futuro médico pode parecer caro, mas os benefícios que resultam desse gasto são muito maiores, para a economia e a vida dos pacientes, ao longo dos anos. “Nunca é muito pouco o que é muito melhor”: em um mundo ideal, os chamados “médicos de elite”, generalistas e especialistas, seriam regra, não exceção. O que foi descrito até aqui só poderia acontecer sem a interferência de professores de medicina e representantes dos médicos. Até pouco tempo atrás, a elaboração do currículo era responsabilidade dos profissionais da área, reunidos nas respectivas instituições de ensino ou nas entidades representativas. Entretanto, o discurso sentimentalista do SUS, bem recebido pela emoção, mal interpretado pela razão, persuadiu médicos e professores a permitir que pessoas que conhecem pouco da medicina interferissem na essência dela mesma. O pretexto da construção do SUS passou a guiar as decisões sobre a prática e o ensino da medicina, feitas de modo cada vez mais centralizado, no governo. A transferência da discussão do currículo do âmbito médico para o âmbito político afasta profissionais e professores das decisões mais importantes sobre o que ensinar e por que ensinar, visto que os objetivos últimos do curso não são mais atribuição dos que vivem e praticam a medicina, mas, sim, de uma intelligentsia que acredita conhecer o bastante para determinar os rumos de toda a sociedade. Decisões políticas passaram a pautar o ensino e a futura prática médica, respaldadas por “especialistas”, ideologicamente alinhados ao governo, chamados para validar as decisões, como Thomas Sowell bem explica. ![]() A organização do novo currículo do curso de medicina vem sendo construída mais em razão da organização do SUS do que em função do interesse que o indivíduo, todo ser humano, tem em relação à ciência e a prática médica em si. No entendimento dos intelectuais que planejam o SUS, o curso de medicina deve levar em consideração o aparato do Estado, os desígnios do governo porque, em teoria, o interesse dos indivíduos insere-se no abstrato “interesse coletivo” - o que não é bem verdade, como a realidade demonstra. Desse modo, na “nova medicina”, o SUS ocupou a posição axiológica antes cabida à pessoa humana. Basta observar que a enorme quantidade de textos em educação médica e documentos oficiais sobre o tema, especialmente as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Medicina, para notar como o indivíduo e a medicina propriamente dita passaram a ser secundários – ou mesmo irrelevantes – nas discussões. Parece que o SUS não é apenas um meio de prática médica, mas sim a própria finalidade da medicina. Entretanto, o SUS é apenas um dos infinitos ambientes que podem ser criados para o agir da medicina, não o sinônimo desse mesmo agir. O ideal do SUS não é o ideal da medicina: eles habitam categorias diferentes. A medicina, enquanto ciência, técnica e atividade interpessoal, não serve à sociedade, instituição, Estado ou qualquer outra abstração coletiva. Ela se destina a atender o problema particular de cada indivíduo, único e sem igual. Um sistema de saúde deve ser o suporte e não o molde do que deve ser feito para cada pessoa atendida. Como será o futuro da medicina e dos médicos? Quem abraça essa carreira certamente deve estar ciente de seu papel na sociedade, o que não significa que deva aceitar ser prejudicado nesse processo. O bem do paciente também depende do bem do próprio médico, sendo realmente necessário equilibrar os interesses de ambos, pacientes e médicos, porém sem escravizar estes últimos, nem os primeiros, através do poder de Estado. Muitos autores nos alertaram a respeito da ameaça trazida pelo marxismo, o estatismo coletivista e o populismo contra a liberdade das pessoas, mas poucos expõem as consequências secundárias, também graves, para a ciência, a axiologia das profissões e a formação profissional. Esse artigo é um convite a estudantes de medicina, professores e amantes da liberdade a observarem como a literatura atual em educação médica se baseia no paradigma coletivista-estatista, em detrimento dos aspectos realmente essenciais para a boa prática da medicina e seu ensino: as ciências naturais e a ética personalista. Talvez assim os novos médicos ajudem a sociedade a refletir e evitar a repetição dos recentes equívocos do mundo ocidental, no século XX. “A ditadura perfeita terá as aparências da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão.” Por Valdemar Katayama Kjaer — Médico oftalmologista, mestre em ensino em ciências da saúde pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Se considera um liberal-conservador. Cita como algumas de suas influências Abraham Kuyper, Hélio Angotti Neto e Benjamin Wiker.
19 Comentários
Álvaro
2/3/2016 22:11:09
Excelente! Faltava um texto tão claro, tão transparente acerca da realidade contemporânea da medicina brasileira. Quem não é da área acaba tomando partido apenas daquilo que o governo (populista) expõe. Esse texto é uma dissecação, uma crítica analítica e verídica, Parabéns!
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Francisco
2/3/2016 22:37:19
Muito bom o texto mas faltou falar da propaganda da indústria farmacêutica, com seus lobbies e manipulações.
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4/3/2017 13:14:37
Fui e recordo com saudades da época da FSESP ( ligada ao M. Saúde ) e que jamais deveria ter sido extinto pelo Governo Federal. Dirigi Maternidade e Hospital desta Findação , em que nós médicos tínhamos como escopo a melhor Assistência à comunidade em que vivíamos , como verdadeiros protagonistas e fazendo da Medicina o sacerdócio que ainda hoje apregoamos e desejamos que nossos alunos absorvam , atendendo para viver com a dignidade que nossos Mestres mostraram e que sob as bênçãos do SENHOR fazíamos maravilhas . Sabíamos que ganhávamos pouco , mas de forma suficiente para ser respeitado pela população onde éramos lotados e pelos munícipes do entorno daquele Hospital ou Unidade Mista , como trabalhei atendendo a população necessitada de 10 municípios , que felizmente compreendiam a nossa jornada gloriosa de salvar vidas , com parcos recursos , mas com a consciência do saber e da lida , sem pensar no numerário que percebíamos a cada mês. Cada ação médica simplória ou não era íntimamente festejada pela felicidade e alegria alcançada pelo médico, para - médico com reflexo para a sociedade onde vivíamos. Este era para mim a Lei 80/80 do verdadeiro SUS, desintegrado pelos artífices do Poder Central e com apoio dos Governantes de cada Estado e Município infelizmente. Há condições hoje de se pensar em Medicina como carreira de Esttado , como vi e trabalhei na Espanha , já avindo da gloriosa Fundação Dos Serviços Sociais de Saúde Pública( FSESP). Que saudades .
Lol
2/3/2016 23:22:48
O ser humano está deixando de ser um arranjo complexo de células, tecidos e órgãos. De acordo com as novas "correntes", o Homo sapiens na realidade nem sequer existe, o que existe é o proletariado oprimido. Não é mais função do médico curar. De acordo com as novas diretrizes biopsicossociaias-religiosas-filosóficas-cubanas, é função e dever do médico espalhar a palavra de Marx.
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Ricardo
4/3/2017 10:35:44
Nossa! Troque seu fornecedor de Cannabis, pois sua última encomenda veio estragada!! Cruz credo!!
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Izabel
5/3/2016 14:50:31
Este texto deveria ser obrigatório para todos estudantes de medicina!
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Juliana
7/3/2017 13:51:23
Siiiim
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José Carlos
6/3/2016 00:53:35
Excelente texto deveria ser lido por todos estudantes de medicina mesmo. Fazer o que gosta é fundamental para a realização pessoal. Faço atenção básica porque gosto mas o meu preparo para esta prática envolveu imã longa passagem por duas residências e estágio em especialidades, só assim me senti preparado para a atenção básica. Não vejo hoje a preocupação com este preparo para o médico generalista.
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Felipe
6/3/2016 12:31:27
Texto interessante, porém não concordo 100%. Vou dizer o porquê: estou no último período do curso e posso afirmar que muito me angustia saber que perdi tempo precioso de minha formação em enfermarias vendo (compulsoriamente) casos hiperespecializados que pouco me interessavam e que provavelmente eu jamais verei na prática clínica, enquanto não sabia tratar uma hipertensão arterial sistêmica ou diabetes não complicado ou mesmo fazer um exame oftalmológico ou otoscópico. A imensa maioria dos estudantes pretende trabalhar ao se formar plantões de urgência clínica. Porém, temos apenas uma disciplina durante o curso que não contempla a imensidão de conhecimentos necessários para tal. O que sei de urgência aprendi em estágios extracurriculares e por conta própria. E digo mais: estudo numa das melhores universidades do país e jamais tirei notas baixas.
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Valdemar Katayama Kjaer
6/3/2016 12:36:54
Prezado Felipe, muito obrigado por seu comentário. Você tem toda razão. Esse tema não pôde ser incluído nesse texto, que deveria ter apenas duas páginas, por determinação do concurso Atlantos. Mas eu não deixo de falar nisso, no meu livro, que em breve estará disponível. Esse artigo é um resumo do primeiro capítulo, apenas.
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Cynthia
6/3/2017 21:31:50
Gostaria de parabenizá-lo pelo artigo e externar a minha satisfação em ter a oportunidade de pensar a formação médica sob essa ótica. Sou cirurgiã-dentista, doutoranda em Saúde Coletiva. Minha dissertação de mestrado foi sobre a formação em saúde, tecnicista e especializada e a necessidade de mudança. Com certeza vou considerar muitos aspectos de suas abordagens em nossas próximas publicações sobre o tema.
Ary Ismael Orihuela da Luz
7/3/2017 16:13:53
Prezado colega . . . precisamos gradualmente nos reunir, ainda que virtualmente para articular ações que possam efetivamente servir de orientações ao CFM e outros órgãos . . . nosso isolamento deixa tantos potenciais inativos, fragilizando ainda mais nossa profissão . . .
Pedro Silveira
4/3/2017 11:05:04
Parabens Valdemar, esta mudança curricular, com 50 tons de vermelho, esta empobrecendo muito os novos médicis. Como preceptor de estudantes ha 29 anos, testemunho esse massacre oco. Estao perdidos entre a teoria ultratecnocrata e a pratica semiológica pobre.
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Pedro Wandeley de aragao
4/3/2017 20:09:08
Excelente Remeterei a alunos de medicina e alguns politicos
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Tarcisio
5/3/2017 14:09:17
Não concordo.
Responder
João Bosco Figueiredo
5/3/2017 21:43:28
Excelente artigo, para estudantes de medicina e médicos de todo o país , mas acho que o bom profissional é aquele que faz o que gosta. No momento, a saúde e a medicina brasileira é mercadoria uns vendem outros compram, e tem que existir lucro. Acho que o médico no momento é um simples assalariado e não faz o que gosta. É prisioneiro do governo e planos de saúde. Vejo também a necessidade de melhor orientação prática para os atuais estudantes pois muitos não sabem fazer um simples exame físico. Podemos adicionar aqui a violência econômica, pois muitas faculdades , cobram 6000.00 R $ por uma mensalidade.
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Ary Ismael Orihuela da Luz
7/3/2017 08:24:29
Parabenizo-o pelo texto, apresenta argumentos sólidos sobre os objetivos e danos, advindos das mudanças realizadas na educação médica nestes últimos 20 anos. Tudo orquestrado pelo pensamento ideológico de quem deseja estabelecer no Brasil o Socialismo, Comunismo ou Socialcomunismo (que se dê qualquer nome). Felizmente as sociedades são integradas por seres humanos cujo potencial de pensar é ilimitado, apesar de ser possível subtrair essa capacidade de alguns. Evidente que, um tema imenso, não conseguiria abordar todos aspectos, tanto da educação como da atuação profissional, ainda mais de uma profissão milenar e que é responsável por cuidar do dom maior de todos “a vida”.
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George M N da Silva Jr
7/3/2017 19:12:37
Excelente texto instigando à reflexão. As reformas curriculares do ensino médico parecem-me precipitadas e mais ainda a profusão de escolas médicas muito acima da capacidade das redes assistenciais (todas em todos os níveis) de absorver os novos aprendizes em locais-cenários de prática dignos. Estamos ensinando e formando médicos tolerantes com locais de prática superlotados, sujos, insalubres e onde falta tudo! Estou ansioso pelo livro, Dr Waldemar Katayama Kjaer. E obrigado pelo texto bem elaborado e suficientemente polêmico para iniciar uma discussão que merecemos conduzir com urgência e competência pois a pratica e a formação medicas está no fundo do poço.
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Nota: a opinião dos autores não reflete necessariamente a posição do grupo.
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